Dia dos Povos Indígenas e o veto presidencial inconvencional ao PL 5.466/2019

Dia dos Povos Indígenas e o veto presidencial inconvencional ao PL 5.466/2019

Dia dos Povos Indígenas e o veto presidencial inconvencional ao PL 5.466/2019

 

Autores: Gabriel Dourado, Liana Amin Lima da Silva e Rachel Libois

 

O Projeto de Lei (PL 5.466/2019) que mudava a designação do Dia do Índio, celebrado em 19 de abril, para Dia dos Povos Indígenas, foi vetado integralmente pelo presidente da República, Jair Bolsonaro.

 

Para vetar o projeto, o presidente, que tem duras posições anti indígenas, alegou que “não há interesse público na alteração contida na proposta legislativa” e que a Constituição Federal adota a expressão “Dos Índios” para nomear o Capítulo VIII do título sobre a Ordem Social.

 

O PL 5.466/2019 foi apresentado originalmente pela deputada Joênia Wapichana (Rede-RR), a primeira deputada federal indígena a ser eleita no país, e relatado em Plenário pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES), que defendeu a aprovação do projeto. Segundo o parlamentar, a diferença entre as expressões “índio” e “povos indígenas” não se trata de “mero preciosismo”, já que o termo “indígena” significa “aborígene”, “originário” ou “nativo de um local específico”, é uma forma mais precisa pela qual podemos nos referir aos diversos povos que, desde antes da colonização, vivem nas terras que hoje formam o Brasil.

 

Segundo o parlamentar, o estereótipo do “índio” alimenta a discriminação, que, por sua vez, instiga a violência física e o esbulho de terras indígenas, apesar de serem protegidas constitucionalmente e pelo Direito Internacional, por meio de documentos como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas.

 

O texto do PL, apoiado pelas lideranças indígenas, havia sido aprovado em maio pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. O insustentável veto do presidente será apreciado em sessão conjunta do Congresso Nacional, que tem o dever de reafirmar a posição adotada em maio e derrubar a decisão presidencial.

 

A data de 19 de abril se remonta à realização do Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, no México, mais especificamente na cidade de Pátzcuaro, no Estado de Michoacán, entre 14 e 24 de abril de 1940, e contou com a participação de delegações de praticamente todo o continente americano. Nessa oportunidade, o dia 19 de abril foi definido como o “Dia do aborigem americano”, ou seja, o dia dos povos nativos do continente americano.

 

O presidente honorário do Primeiro Congresso Indigenista Interamericano foi Lázaro Cárdenas del Río, presidente do México, bem como na cerimônia de abertura foi lida uma mensagem do presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt. Apesar de que estava em curso a Segunda Guerra Mundial, o esforço de diversos líderes para coordenação de políticas indigenistas em todo o continente causou impacto em toda a região.

 

Apesar de que havia delegação do governo brasileiro no Congresso, no Brasil, este dia comemorativo não foi denominado como “Dia do aborígene americano”, mas sim como “Dia do Índio”, em 19 de abril a partir do Decreto-Lei nº 5.540, promulgado por Getúlio Vargas em 02 de junho de 1943, o que expressa o desconhecimento e estigmatização contra os povos indígenas naquela época, o que, lamentavelmente, ainda permanece em muitos setores da sociedade, apesar dos avanços obtidos com a Constituição Federal de 1988.

 

O Congresso Indigenista Interamericano foi realizado até o fim do século passado, sendo discutidos vários temas relacionados às políticas indigenistas no continente. Cabe ressaltar que o Sétimo Congresso Indigenista Interamericano foi realizado em Brasília, entre 7 a 11 de agosto de 1972, quando lamentavelmente a ditadura militar brasileira minimizava a presença dos povos indígenas no país e defendia que boa parte dos indígenas já estavam “incorporados” à vida nacional, apesar de mencionar a presença de indígenas em “isolamento”, e que estava em processo de aprovação o “Estatuto do Índio”, que de fato foi aprovado por meio da Lei nº 6.001 de 1973, que veio a positivar uma perspectiva integracionista, que de fato seria superada em 1988 com a promulgação da Constituição Federal.

 

No âmbito internacional a Convenção nº 107 da OIT de junho de 1957 já empregava o termo “indígenas” ao invés de “índios”, contudo o instrumento internacional possuía forte caráter integracionista e tutelar, ou seja, estabelecia propostas para integração dos povos indígenas, vendo-os como atrasados e que necessitavam de tutela para serem, supostamente, protegidos. Além disso, refere-se a “Populações Indígenas” e não “Povos Indígenas”.  Já que utilizar-se do termo “povo” era visto como afronta à soberania nacional, de modo que não há nenhuma menção a tal termo na Convenção nº 107. Já nos anos 80 o movimento indígena, tanto a nível nacional quanto internacional, expressaram seu descontentamento com a mencionada Convenção e batalharam pela superação da perspectiva integracionista expressa no texto.

 

Assim, em 1989, a OIT aprova a Convenção nº 169, que revoga a Convenção nº 107 e sua perspectiva integracionista, coloca os povos no centro das discussões que lhes dizem respeito, reconhecendo sua autonomia e identidade étnica-cultural. A nova Convenção já em suas considerações iniciais utiliza-se do termo povos e em seu título consagra menciona a expressão “Povos Indígenas”. O instrumento normativo abandona o ideal da integração e o paternalismo tutelar, colocando os povos e sua autonomia no centro das discussões sobre seus direitos. Consagra, portanto, o termo “povos” no âmbito internacional e mais, utiliza-se também do termo “território”, além de prever o direito à consulta livre, prévia e informada. A Convenção nº 169 foi ratificada pelo Brasil somente em 2002 e promulgada em 19 de abril de 2004 por meio do Decreto nº 5.051. O texto viria a ser republicado por meio do Decreto nº 10.088 em 2019, que consolida todas as convenções e recomendações da OIT ratificadas pelo Brasil.

 

Ademais, é necessário ressaltar que em 1994 a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou o dia 09 de agosto como o Dia Internacional dos Povos Indígenas, no marco do decênio internacional das Populações Indígenas do Mundo, que se realizou entre 1995 e 2004. Esta data é celebrada como dia dos Povos Indígenas em alguns países do continente americano, como México e Chile, e, assim como a celebração de de 19 de abril, se contrasta com a celebração do “dia do descobrimento da américa”, estabelecido em 12 de outubro em alguns países da região, em razão da chegada de Cristóvão Colombo no Caribe em 1492, o que vem sendo ressignificado como “dia da resistência indígena”, em razão do processo de colonização a que os povos indígenas resistiram e continuam a resistir desde a invasão do continente americano.

 

Outros dois instrumentos internacionais tratam acerca dos Povos Indígenas referenciando-os como Povos, sendo a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas. A primeira data de 2007 e reconhece o respeito às culturas e práticas tradicionais dos povos indígenas, além do direito dos povos a não serem assimilados forçadamente, enterrando o integracionismo. A Declaração Americana, por sua vez, data de 2016 e também utiliza-se do termo povos e reconhece a importância dos povos indígenas no contexto das Américas, além de reafirmar o dever estatal de respeitar o direito à auto identificação dos povos indígenas. Não há polêmica em utilizar-se do termo povos, não há afronta à soberania nacional, tal discussão está superada há algumas décadas, mas o veto presidencial aqui tratado explícita um retrocesso em tal discussão, uma visão arcaica que com certeza será rechaçada pelo Congresso Nacional, que deve derrubar o veto presidencial e adotar a denominação adequada para se referir a esta data.

 

O dia do aborigene americano também é celebrado em 19 de abril na Costa Rica, conforme estabelecido pelo Decreto nº 1803-C de 19 de abril de 1973, bem como na Argentina, por meio do Decreto N° 7550 de 1945. Atualmente, na Argentina esta data é denominada “Día de los Pueblos Originarios”, em respeito à diversidade de povos que habitam seu território desde antes da colonização europeia.

 

Entretanto, é necessário ressaltar que, assim como o Decreto-Lei nº 5.540 deve ser revogado para que a expressão “Dia do Índio” seja substituída para “Dia dos Povos Indígenas”, a Lei nº 6.001 de 1973 também deve ser alterada, pois a perspectiva integracionista não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, à luz da perspectiva de respeito à diversidade cultural.

 

Nesse sentido, há Projetos de Lei buscando um novo Estatuto dos Povos Indígenas, entre eles o PL 2.057/1991, que trata da criação do “Estatuto das Sociedades Indígenas” e tem mais de nove PLs apensados, além do Projeto de Lei do Senado n° 169/2016, que trata sobre a criação do “Estatuto dos Povos Indígenas”. É de extrema importância atentar-se às discussões dos Projetos de Lei, tendo em vista que devem buscar avanços em matéria dos Povos Indígenas e não significarem mais retrocessos, como a aplicação do marco temporal e o desrespeito à consulta prévia. 

 

Portanto, a discussão sobre o novo estatuto dos Povos Indígenas deve estar alinhada com os  avanços dos instrumentos jurídicos internacionais, a exemplo do direito à consulta e consentimento livre, prévio e informado, direito à autodeterminação e ao autorreconhecimento. Do mesmo modo, que seja garantido o direito originário às terras tradicionalmente ocupadas, cumprindo o Estado com o mandamento constitucional da demarcação de terras, ou seja, que seja rechaçada definitivamente a inconstitucional “tese do marco temporal”.  

 

É necessário que o Congresso Nacional não admita retrocessos em matérias de direitos humanos, derrube o veto do presidente e reconheça a pluralidade dos povos indígenas do Brasil, a mudança legislativa permite que se busque mais respeito à história dos diversos povos que habitam o Brasil e se combata o estigma contra os povos indígenas expresso na expressão “índio”, que nega a diversidade cultural e linguística existente no país e alimenta o desrespeito de seus direitos garantidos na Constituição de 1988 e nos instrumentos jurídicos internacionais. Ou seja, trata-se de um veto inconvencional em matéria de direitos humanos, e, portanto, inconstitucional.

 

Ressaltamos que o artigo não expressa a posição oficial do Observatório, mas sim dos autores. 

 

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