Experiência prática com a elaboração de protocolos de consulta no Maranhão

Experiência prática com a elaboração de protocolos de consulta no Maranhão

Experiência prática com a elaboração de protocolos de consulta no Maranhão (1)

Por Joaquim Shiraishi Neto (2)

Boa tarde a todos!!!

Primeiro, gostaria de agradecer o convite para participar deste Simpósio Internacional e desta capacitação de membros do Ministério Público Federal do Trabalho (MPFT). Sinto-me honrado em participar desta mesa com as professoras Dra. Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega, Dra. Liana Amin Lima da Silva e Dra. Raquel Yrigoyen Fajardo.

Ontem, em casa, fui organizar esta minha fala.

Reconheço que sei pouco sobre os temas em questão, diante dos estudos e escritos das professoras Liana e Raquel, que, aliás, têm servido de inspiração para as nossas pesquisas no Maranhão. Além disso, confesso não saber nada sobre “índios isolados” (3). Por isso, tomei a decisão arbitrária de aproveitar a oportunidade para fazer uma breve exposição sobre as minhas experiências práticas de elaboração de protocolos de consulta em quilombos e comunidades tradicionais no meu estado, Maranhão.

Os quilombolas estão envolvidos numa luta contra o processo de duplicação da rodovia BR-135 desde 2017. Em 2014, os seus territórios foram afetados pela duplicação da Estrada de Ferro Carajás–Itaqui (EFC), que açambarcou uma porção de seus territórios tradicionais.

As discussões jurídicas suscitadas propositalmente pelo empreendimento no licenciamento ambiental da duplicação da EFC, relativas à necessidade de um Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) ou Estudo Ambiental/Plano Básico Ambiental (EA/PBA), serviram para “apagar” os “direitos de acesso ambientais” (conforme a Constituição Federal (CF) de 1988 e o Acordo Regional de Escazú).

Já as comunidades tradicionais estão sofrendo com as políticas ambientais dirigidas às unidades de conservação (estou me referindo ao PNLM), mais recentemente, com o processo de “privatização” da gestão dessa unidade de conservação.

Nesse contexto de conflitos socioambientais, decorrentes de iniciativas do Estado brasileiro, a pretexto de desenvolver e de melhorar as condições de vida das populações locais nessas regiões economicamente “empobrecidas” do país, esses grupos étnica e culturalmente diversos, quilombolas e comunidades tradicionais – autodenominados nativos da região das praias do PNLM – decidiram reivindicar o direito de participação e de consulta, tal como disposto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Sua reivindicação concretiza-se por meio dos protocolos de consulta.

Antes de entrar na descrição da minha experiência prática de elaboração de protocolos com esses grupos, gostaria de fazer algumas observações do ponto de vista do direito, lembrando que moro nas regiões Norte e Nordeste do Brasil e que, desde a minha graduação, tenho vivido às turras com o Direito. Se antes o senso comum anunciava que as ilegalidades estavam nessas regiões do Brasil, hoje elas permeiam todo o sistema de justiça. Basta citar o exemplo da chamada “Operação Lava Jato”. 

Voltando ao texto, as observações são:

Primeira observação: no Brasil, é valiosa a relevância da CF de 1988 no processo de reconhecimento da existência formal desses grupos étnica e culturalmente diferenciados – que, sublinha-se, antes mesmo da Constituição, articulavam-se na defesa de seus direitos: povos indígenas, comunidades negras rurais, seringueiros autônomos, incluo aqui também as chamadas quebradeiras de coco babaçu.

Em relação aos povos indígenas, li – confesso que não me recordo onde – que foram um dos únicos grupos sociais que se prepararam para intervir na Assembleia Nacional Constituinte.

Apesar da mobilização dos grupos, constato que o debate jurídico no Brasil sobre a diversidade social, bem como o reconhecimento desses grupos tardaram a acontecer, já que parte da dogmática crítica estava focada na dignidade da pessoa humana (José Afonso da Silva, Ingo Wolfgang Sarlet, ministra Cármen Lúcia etc.), elevada a princípio matriz da ordem jurídica, e, por consequência, na efetividade do extenso catálogo de direitos sociais contidos no texto constitucional, dadas as enormes desigualdades socioeconômicas ainda persistentes e hoje agravadas no Brasil. 

Uma segunda observação: a incorporação da Convenção 169 da OIT em 2004, da qual se apropriaram esses grupos, contribuiu para sua mobilização em defesa de seus direitos e de políticas específicas, como a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, de 2007 (Decreto n.º 6.040). 

No caso, a Convenção contribuiu para a promoção da “luta jurídica localizada” (4), nas arenas municipais e estaduais, não se restringindo à litigância nos Tribunais, mas atingindo também as políticas (como a co-oficialização das línguas indígenas em São Gabriel da Cachoeira (AM) e Barra do Corda (MA), as leis do babaçu livre no Maranhão e no Tocantins, o Dia da Catadora de Mangaba em Sergipe, entre tantas). Isso que estou chamando “luta jurídica localizada” é algo singular do Brasil, penso eu, diferente de outros países da América do Sul, pelo menos segundo a literatura que nos chega. 

O protocolo autônomo é uma norma que se vincula ao sistema jurídico (5), deve ser compreendido a partir desse contexto de lutas, agravado neste momento. As lutas são protagonizadas por esses grupos étnica e culturalmente diferenciados (“fora” do Direito, recordo outras experiências que posso aqui nomear, como os mapeamentos sociais confeccionados na década de 2010).

Já vou entrar na experiência prática, mas, antes, gostaria de sublinhar mais um ponto.

Terceira observação: não há como negar os ganhos com os “usos do direito”, que são enormes e, às vezes, incomensuráveis (como a consciência adquirida por muitas lideranças indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais), mas também não podemos perder vista o papel do direito no processo de acumulação, “acumulação por espoliação” (6), que sempre esteve a serviço do capital, hoje financeirizado, com suas estratégias renovadas de apartamento e de exclusão (noções de “homogeneização jurídica” (7), “globalização do direito americano” (8), rule of law (9)).

No caso do Brasil, preocupo-me especificamente com o incentivo à chamada “litigância estratégica” no sistema e nas instituições de justiça, sobretudo quando as ações de mobilização política são baseadas no reflexo das ações jurídicas. Daí a importância, creio eu, da elaboração dos protocolos, o que implica um retorno dos operadores e assessores ao que denominávamos formação e capacitação jurídica. Hoje os “entrelaçamentos” (10) e as “conexões” (Bruno Latour) devem orientar esses processos formativos.

Diante dos conflitos vividos cotidianamente (empreiteiros e tratores na BR-135 e funcionários do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)), os quilombolas e nativos da região das praias do PNLM decidem, com os seus parceiros, Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN-MA) e Gerur – grupo de pesquisa da UFMA –, elaborar seus protocolos de consulta.

A solicitação parte dos grupos que, há algum tempo, em 2017 e 2014, têm sofrido com as obras de duplicação e as ações que afetam a vida em seus territórios tradicionais.

Vejam, o protocolo de consulta é mais um instrumento no conjunto de ações realizadas ou por realizar (como estudos, mapas, denúncias, representações, audiências, reuniões etc.) na defesa dos territórios. Isso tudo, importa afirmar, não é restrito às “quatro linhas da Constituição”, já que o sistema é aberto e plural. Aliás, se fossemos utilizar uma figura geométrica para representar a Constituição, ela não seria um quadrado ou um retângulo, mas algo mais vivo em razão da pluralidade e da complexidade da nossa sociedade.

Decidida a confecção do protocolo de consulta, inicia-se o processo, constituído, no caso desses grupos, das seguintes etapas construídas e elaboradas durante a construção do protocolo, sublinha-se, sob controle dos grupos – para os quilombolas, o Comitê de Defesa dos Direitos dos Povos Quilombolas de Santa Rita e Itapecuru-Mirim e, para as comunidades nativas, as Associações.  

Consideremos a elaboração do protocolo como um primeiro exercício prático da realização do direito de consulta junto às comunidades.

Gostaria de afirmar também que os protocolos, pelo menos o que estamos fazendo, não são um documento legal simples, apesar da forma escolhida, com linguagem, vídeos, imagens, figuras etc. Trata-se de um conjunto de procedimentos (orientados pela concepção freiriana de considerar os sujeitos, suas falas, suas experiências e seus contextos) e de teorias não só jurídicas, mas também étnica (Fredrik Barth), política, sociológica, camponesa). Confesso que a experiência zapatista (11) de organização e mobilização foi importante para conceber relações mais assimétricas e inclusivas de participação, com destaque para o papel das mulheres que contribuem na organização, na luta e no cuidado.

Em relação às etapas: a primeira etapa, denominada “oficina informativa”, consiste, didaticamente falando, em dois momentos: auscultar os sujeitos e discutir alguns temas da Convenção 169, como identidade, consciência de ser, território e direito de consulta. 

Lembro que, em um momento anterior a essa “oficina informativa”, a equipe que está mediando a construção do protocolo terá levantado dados das comunidades em diferentes locais (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (Iterma), ICMbio, grupos de pesquisa, universidades, ongs etc.) 

Após a oficina, uma outra era realizada para “sentir, ouvir, ver e cheirar” as vontades e necessidades das comunidades. O cheirar apareceu no período da pandemia, quando, em uma live on-line, reclamavam a falta de sentir o cheiro da(o)s companheira(o)s.

Ao mesmo tempo, algumas questões iam sendo introduzidas, como a definição de quem deve participar da consulta. Daí o “aparecimento” da categoria nativo na oficina do PNLM, por exemplo. Quem não pode faltar? Quem não pode vir? Quem são os parceiros? Quando deve ser realizada a consulta? 

Nos quilombos, as questões relacionadas ao que denominam “não humanos” também vieram à tona nas oficinas, já que esses seres, além de habitar os territórios, têm um papel importante na defesa e na orientação das comunidades. Em Oiteiro dos Nogueiras (MA), duas “mães d’água” habitam e cuidam do poço da comunidade. Daí as preocupações sobre a maneira de ouvir esses seres no período da consulta. 

Essa oficina desdobrava-se em uma ou mais reuniões. 

Após essas etapas das oficinas, os pesquisadores ou mediadores recolhiam-se para classificar e organizar as informações obtidas, dando forma a um esboço de protocolo de consulta, que é discutido e aprovado em uma “assembleia territorial”. No caso dos quilombolas, esse esboço é antes submetido ao Comitê de Defesa. 

Tambor de Crioula São Benedito na Assembleia territorial

Fonte: equipe técnica responsável (Dez./ 2022).

Aprovado o Protocolo, ele é submetido a uma revisão pelos “pares”. Por ser uma norma, com suas especificidades, é submetido a uma análise científica e política. Ao final, professores de direitos humanos, pesquisadores independentes, advogados militantes de movimentos, com os da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) (12), têm participado e contribuído nessa etapa.

Findas essas etapas, o Protocolo de Consulta é encaminhado para edição, no nosso caso, realizada por pessoas (jornalista e professora) vinculadas às lutas.

Já concluindo a minha fala, gostaria de constatar a enorme boa-fé e a crença desses grupos no sistema e nas instituições de Justiça e Direito, apesar de toda sorte de violência sofrida ao longo dos tempos, desde o período colonial. Pelo visto, as relações que marcam a convivência no interior das comunidades – solidariedade, complementaridade e reciprocidade – espelham as relações com os de fora.

Do ponto de vista do Direito, o Protocolo de Consulta deve ser visto como mais um instrumento, entre tantos, de defesa dos territórios. Vale a pena reafirmar que o mais importante é o processo de construção desse documento legal, na medida em que o processo possibilita o fortalecimento da identidade quilombola ou nativa, como nos casos. Importa lembrar que o Protocolo pode ser ignorado pelo sistema de justiça, mas a consciência de si, não.

Verifica-se que os protocolos possibilitam reposicionar a política e suas ações no centro das discussões. 

Por fim, mais uma vez agradeço o convite e coloco-me à disposição para os debates.

 

Notas de fim

  1. No caso desses protocolos, contamos com distintas equipes: no Protocolo dos Quilombos de Santa Rita (MA), com Ester Mendes Gomes e Maria Gabrielle, ambas estudantes do curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão (UFMA); no Protocolo das Comunidades Tradicionais das regiões das praias do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (PNLM), com o Dr. Benedito Souza Filho e Joallysson Desterro Bayma.
  2. Advogado. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCSoc) da UFMA. Pós doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Doutor em Direito. Pesquisador do Observatório de Protocolos. Membro do Instituto de Pesquisa em Direitos Humanos da Amazônia (IPDHA). Texto apresentado na Mesa 8: “Convenção 169 da OIT. Consulta livre, prévia e informada: conceitos, pressupostos, princípios, diretrizes e procedimentos de validação e invalidação. Diálogo intercultural. A questão dos povos isolados”.

  3. Sugiro o documentário Serras da Desordem, de Andrea Tonacci (2006), sobre a história de Carapiru.
  4. A respeito, consultar: SHIRAISHI NETO, Joaquim. Novos movimentos sociais e padrões jurídicos no processo de redefinição da Região Amazônica. In: SHIRAISHI NETO, Joaquim et al. (org.). Meio ambiente, território & práticas jurídicas: enredos em conflitos. São Luís: Edufma, 2011. p. 23-52.

  5. SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A força vinculante do protocolo de consulta. In: GLASS, Verena et al. (org.). Protocolos de Consulta Prévia e o direito à livre determinação. São Paulo: Fundação Rosa de Luxemburgo; CEPEDIS, 2019. p. 19-45. 

  6. HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
  7. BOURDIEU, Pierre. Contrafogos 2: por um movimento social europeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

  8. DEZALAY, Yves; GARTH, Bryant G. The Internationalization of Palace Wars: Lawyers, Economists, and the Contest to Transform Latin America States. Chicago: The University of Chicago Press, 2002. 

  9. MATTEI, Ugo; NADER, Laura. Plunder: When the Rule of Law is Illegal. Oxford: Blackwell Publishing, 2008.

  10. Conferir: TSING, Anna. O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruinas do capitalismo. São Paulo: N-1 Edições, 2022.

  11. Sugiro a leitura de: BASCHET, Jérôme. A experiência zapatista: rebelião, resistência, autonomia. São Paulo: N-1 Edições, 2021.

  12. No Protocolo dos Quilombos de Santa Rita (MA), revisaram as doutoras Liana Amim Lima da Silva e Maira de Souza Moreira (Observatório de Protocolos) e Ms. Jefferson da Silva Vieira (Conaq); no Protocolo das Comunidades Tradicionais das regiões das praias do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (PNLM), os doutores José Helder Benatti (UFPA) e Judith Vieira Costa (UFOPA) e o advogado Diogo Cabral (Fetaema).
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