Quilombolas e apoiadores do movimento quilombola

Quilombolas e apoiadores do movimento quilombola

Por Matheus Leite*

 A Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N’Golo ajuizou ação civil pública com o intuito de assegurar o respeito do direito à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé da comunidade quilombola de Queimadas em relação ao empreendimento minerário denominado “Projeto Ônix Céu Aberto”, proposto pela mineradora “ÔNIX CÉU ABERTO MINERAÇÃO LTDA”.

 Apesar de a comunidade quilombola de Queimadas estar situada a menos de 5 km da Área Diretamente Afetada (ADA) do empreendimento minerário, além de muitas outras comunidades camponesas tradicionais localizadas no entorno da ADA, a mineradora apresentou estudo ambiental com a informação de que “a Área de Influência Direta (AID) é constituída por moradores de propriedades do entorno do empreendimento. Não há nenhuma comunidade constituída no entorno do empreendimento que poderá ter impacto direto do empreendimento” (RIMA, pág. 104).

 O RIMA foi elaborado por equipe técnica multidisciplinar. Os estudos do meio socioeconômico e cultural foram realizados por pessoa com graduação em Letras e sem qualquer especialização, mestrado ou doutorado na área de antropologia. É sabido que a graduação em Letras não proporciona, em regra, formação acadêmica apropriada para a realização de “estudos do meio socioeconômico e cultural” e de estudos sobre povos e comunidades tradicionais, inclusive quilombolas. A verdade é que, em se tratando de questão de povos e comunidades tradicionais, inclusive comunidades quilombolas, é imprescindível que os estudos do meio socioeconômico e cultural sejam realizados por antropólogo. A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) reconhece como antropólogo pleno apenas quem tem graduação em ciências sociais e mestrado/doutorado em Antropologia, e não o mero graduado no Curso de Letras.

 O mapa abaixo reproduzido permite a visualização da proximidade do empreendimento minerário do território da comunidade quilombola de Queimadas.

 O estudo ambiental da mineradora “ÔNIX CÉU ABERTO MINERAÇÃO LTDA” é uma fraude, perpetrada com o intuito de invisibilizar e negar os direitos mais básicos à comunidade quilombola de Queimadas, tais como a vida, o bem-estar e, no licenciamento ambiental, a consulta livre, prévia, informada e de boa-fé, prevista na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT.

 A ação judicial visa, então, reestabelecer a verdade, a justiça e o respeito aos direitos fundamentais da comunidade quilombola de Queimadas e de toda a população serrana. A ação civil pública tramita sob o número 1000112-50.2023.4.06.3812, perante a 1ª Vara Federal Cível e Criminal da Subseção Judiciária de Sete Lagoas/MG.

 Na petição inicial, a Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N’Golo pleiteou a concessão de tutela de urgência para suspender a realização de Audiência Pública, agendada e publicitada para o dia 17/01/2023 às 18hs, relativa ao processo de licenciamento ambiental número 02198/2022, ordenando-se que a referida audiência pública somente seja realizada após a disponibilização de todos os estudos técnicos e manifestações dos órgãos públicos, federais, estaduais e municipais, competentes para a proteção dos bens culturais e ambientais diretamente afetados pelo empreendimento minerário “Projeto Serro”, especialmente dos seguintes estudos técnicos e manifestações: a) Estudo de Impacto Ambiental (EIA) referente ao empreendimento minerário “Projeto Ônix Céu Aberto”; b) Estudos técnicos para a avaliação de impacto ao patrimônio cultural (material, imaterial e arqueológico), bem como a manifestação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN sobre os impactos nos bens culturais acautelados no âmbito federal, especialmente no conjunto arquitetônico e urbanístico da cidade do Serro, bem tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), por meio da notificação nº 57, de 15 de fevereiro de 1938; c) Estudo do Componente Quilombola – ECQ e do Projeto Básico Ambiental Quilombola – PBAQ, a ser elaborado em estrita observância dos parâmetros da Instrução Normativa INCRA nº 111, de 22 de dezembro de 2021, com a manifestação prévia da Fundação Cultural Palmares e do Instituto de Colonização e Reforma Agrária – INCRA; e, d) Realização de consulta livre, prévia, informada e de boa-fé da comunidade Quilombola de Queimadas, respeitando-se o protocolo de consulta apresentado pela comunidade quilombola de Queimadas, nos termos do disposto no artigo 10 da Resolução Conjunta SEDESE/SEMAD nº 01/2022.

 A tutela de urgência foi indeferida pelo juízo da 1ª Vara Federal Cível e Criminal da Subseção Judiciária de Sete Lagoas/MG. E, contra essa decisão judicial, foi interposto o recurso de agravo de instrumento.

 O agravo de instrumento tramita sob o número 1000149-67.2023.4.06.0000, perante a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 6ª Região, sob a relatoria do Desembargador Federal Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Em decisão monocrática, o Relator deferiu a antecipação de tutela recursal e ordenou “a suspensão da audiência agendada para 17/01/2023 até que seja realizado o procedimento de que trata a Convenção OIT no 169 e sejam disponibilizados os estudos de todos os órgãos e entidades envolvidas”.

 Os fundamentos da decisão acima indicada são ainda mais importantes do que o seu dispositivo, por expressarem o compromisso do Estado brasileiro com a superação do racismo estrutural, engendrado por séculos de uma colonialidade que é a outra face da modernidade, e que nega os direitos humanos mais básicos à população negra e quilombola. 

 O Desembargador Federal Álvaro Ricardo de Souza Cruz afirma textualmente que:

 “Se, por um lado, a parte agravante traz ao debate a ética da libertação de Enrique Dussel, reforçamos com a ética de Emmanuel Lévinas o imperativo do Outro. A atividade do julgador deve fundar-se na responsabilidade infinita para com o Próximo, sem permitir que o procedimento encubra a face daqueles a quem o Direito deve servir como correção. Neste sentido é que, comunidades historicamente renegadas, bem como os entes ambientais, precisam ter seus direitos garantidos com especial atenção.

 Ainda, como escrevi anteriormente, o histórico recente da sociedade brasileira foi de tortura e assassinato de povos indígenas e tradicionais, aqui incluídos aqueles de origem quilombola. Nesta pesquisa de pós-doutorado, identifico relatos de como o Estado brasileiro participou no agravamento da situação destas mesmas pessoas tuteladas pela Convenção nº 169 da OIT e como a ausência de direitos de proteção àqueles que historicamente são mais oprimidos favoreceu para este quadro. 

 A discriminação positiva trazida pela exigência de uma consulta aos integrantes da comunidade Queimadas não só é lícita, como se faz imperiosa para que os Rostos destas pessoas não sejam invisibilizados, sendo necessário o cumprimento da Convenção. Esta constatação, vai ao encontro do que afirmo no citado livro, sobre a importância de o Estado criar mecanismos de proteção e testemunho a estes povos em face da supressão de suas culturas e modelos de vida. A memória, a religiosidade, a liberdade e cultivo de práticas relacionadas com a natureza, dentre outros elementos, não podem ser desprezados a partir da supressão da consulta e do consenso que a Convenção exige”. 

 As razões acima transcritas constituem verdadeiro jardim no deserto que é o sistema de justiça brasileiro, que nega e naturaliza as violações mais brutais dos direitos humanos das vítimas da sociedade colonial/moderna e dá uma aparência de justiça àquilo que é, evidentemente, as formas mais brutais de opressão e exploração dos vulneráveis. O sistema de justiça brasileiro é um verdadeiro deserto para os direitos humanos das classes e grupos étnicos subalternizados ao longo do processo de formação da sociedade colonial/moderna no Brasil. 

 Espero que essa decisão seja o início da primavera para o sistema de justiça brasileiro, de modo a transformá-lo num espaço de afirmação dos direitos fundamentais das comunidades quilombolas e de outros povos tradicionais contra os interesses do “capital”, esse conjunto de coisas que a brutalidade da sociedade burguesa (moderna/colonial) transformou em “sujeito de direito” ao mesmo tempo em que “coisifica” os trabalhadores, as mulheres, os negros, os quilombolas, os indígenas, os homossexuais, enfim, todas as pessoas sem-direitos a quem se nega a humanidade, o respeito e a consideração que lhes são devidos. 

 As evidências de que a longa estação sombria, tenebrosa e fúnebre pode estar passando vão se somando. Dias antes da decisão do Tribunal Regional Federal da 6ª Região, no discurso de posse do atual Ministro dos Direitos Humanos, o Prof. Sílvio Almeida revelou os ventos dos novos tempos: 

 “Quero, no entanto, estabelecer aqui um primeiro compromisso. O compromisso deste Ministério com a luta de todos os grupos vítimas de injustiças e opressões, que, não obstante, resistiram e resistirão a todas as tentativas de calar suas vozes. Por isso, permitam-me, como primeiro ato como Ministro, dizer o óbvio, o óbvio que, no entanto, foi negado nos últimos quatro anos:

 Trabalhadoras e trabalhadores do Brasil, vocês existem e são valiosos para nós.  Mulheres do Brasil, vocês existem e são valiosas para nós. Homens e mulheres pretos e pretas do Brasil, vocês existem e são valiosos para nós. Povos indígenas deste país, vocês existem e são valiosos para nós. Pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, travestis, intersexo e não binárias, vocês existem e são valiosas para nós. Pessoas em situação de rua, vocês existem e são valiosas para nós. Pessoas com deficiência, pessoas idosas, anistiados e filhos de anistiados, vítimas de violência, vítimas da fome e da falta de moradia, pessoas que sofrem com a falta de acesso à saúde, companheiras empregadas domésticas, todos e todas que sofrem com a falta de transporte, todos e todas que têm seus direitos violados, vocês existem e são valiosos para nós. Com esse compromisso, quero ser Ministro de um país que ponha a vida e a dignidade humana em primeiro lugar”.

 E, nesse contexto, a Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N’Golo diz publicamente: Comunidade Quilombola de Queimadas, você existe e é muito valiosa para nós. Nós, Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N’Golo, reafirmamos o nosso compromisso com a emancipação de todas as comunidades quilombolas, por meio da afirmação dos direitos humanos quilombolas para a superação de todas as formas de violência, opressão e exploração a que ainda hoje estão submetidas nesta ainda colônia chamada Brasil.

 Viva a luta quilombola! Nenhum direito a menos!

 

*Professor de Direito da PUC-MG, doutor e mestre em Direito pela PUC-MG, Advogado da Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais – N’Golo.

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