Se marco temporal passar, 49% de terras indígenas podem ser atingidas
Reprodução de matéria publicada originalmente no jornal Campo Grande News em 12/09/2023, a partir de entrevista com a Profa Liana Lima sobre a ameaça do marco temporal sobre os povos indígenas em Mato Grosso do Sul.
Elas são 32 áreas tradicionais ainda em estudo antropológico ou em processo de demarcação
O marco temporal voltou a ser discutido este ano por ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e por deputados federais e senadores, após diversas interrupções. Ele é uma tese jurídica que considera terras indígenas somente aquelas ocupadas pelos povos tradicionais em 5 de outubro de 1988, a data exata da promulgação da Constituição Federal.
Caso validado, poderá afetar 49% das identificadas como de ocupação tradicional indígena em Mato Grosso do Sul e representar ameaça às populações de três etnias no Estado, segundo especialistas ouvidos pelo Campo Grande News.
Dados da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) analisados pela reportagem apontam que são 65 as áreas indígenas ocupadas ou reivindicadas em Mato Grosso do Sul. O número geral inclui tanto territórios em estudo e em processo de demarcação quanto territórios homologados e regularizados pelo Governo Federal para uso dos povos originários.
Se julgado procedente e de repercussão geral pelo Judiciário para decisões relacionadas a terras indígenas em todo o país, além de sancionado como lei pelo Executivo ou Legislativo, o marco temporal poderá forçar revisões de 32 áreas em fase de demarcação no Estado (veja onde estão, abaixo).
No Brasil, excluindo as de Mato Grosso do Sul, há outras 223 áreas na mesma situação. A Funai entabula o total de 788 terras indígenas de ocupação tradicional indígena já homologadas e regularizadas – o que pode assegurar sua presença mesmo com eventual aprovação do marco temporal – ou em fase de estudos, declaração ou delimitação – o que pode representar possível perda do território reivindicado.
Previsível – Professor e advogado constitucionalista, Wilson Matos é da etnia terena e vive em Dourados, município que tem a terra indígena com maior número de habitantes em Mato Grosso do Sul. São 13.473 pessoas vivendo lá, incluindo não indígenas, de acordo com o Censo Demográfico de 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
É dele a interpretação de quais terras poderão ser impactadas na hipótese de adoção do marco temporal. “No que já foi decidido como terra demarcada, não há como retroagir. Mas, poderão ser revisados os processos ainda em regularização”, justifica.
O terena acompanha a tese desde o seu nascimento jurídico. Ela surgiu na época em que o STF o colocou em discussão no julgamento emblemático da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no Estado de Roraima.
Em 2009, o advogado era membro de um grupo de trabalho sobre direitos indígenas da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) federal e conversou pessoalmente com o ex-ministro da Corte e então relator do caso Raposa Serra do Sol, Carlos Ayres Britto, durante um evento em Brasília (DF). “Eu disse a ele: no Brasil tudo vira ‘moda’, se passarem essas condicionantes inúteis para a demarcação e o marco temporal, vão querer colocar em outras terras. O ex-ministro respondeu que só iria valer para aquelas”, lembra Matos.
O Supremo acabou fixando naquele mesmo ano as condicionantes à ocupação dos diferentes povos indígenas que reivindicavam a área e legitimando o marco, de forma inédita, para concluir a demarcação em Roraima.
Depois de 14 anos da previsão, o advogado terena segue avaliando o marco temporal como ameaça aos direitos já conquistados pelos indígenas. “Na minha opinião, não pode passar e não vai passar. É uma tese esdrúxula, contrária a vários pontos da própria Constituição Federal e a tratados internacionais como a Convenção 69, da Organização Internacional do Trabalho”, começa.
Para Wilson, marcar a data da promulgação da Constituição nos processos de demarcação é ignorar o passado de expulsão de milhares de indígenas de suas terras. “Eles estavam lá há muito mais tempo. Nas décadas de 70 e 80, houve em Mato Grosso do Sul um processo ilegal e violento de esbulho possessório de terras indígenas. Não era raro ver caminhões boiadeiros levando comunidades inteiras de seus locais de origem, a mando do antigo SPI, o Serviço de Proteção Indígena, órgão depois substituído pela Funai”, explica.
Os povos retirados de suas terras foram amontoados em pequenas reservas, onde hoje vivem de forma precária, continua o advogado. “Se o marco temporal for aprovado, poderá haver um novo amontoamento de indígenas de diferentes etnias em áreas já demarcadas, causando uma explosão demográfica e conflitos entre as que vivem de formas diferentes. Será o caos”, prevê.
Ao apontar solução, ele elogia o voto apresentado pelo ministro Alexandre de Moraes, que é contrário à adoção do marco temporal, mas considera haver indenização aos não indígenas que se apossaram das terras tradicionais. “Sem muita paixão, eu penso que a tese dele é excelente e contempla o direito do outro lado, que deve ser prestigiado, sem deixar de colocar responsabilidade muito grande do Estado, que errou e precisa corrigir o erro”, sugere.
Etnias ameaçadas – A professora pós-doutora em Direito Socioambiental da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), Liana Amin Lima, chama atenção à ameça aos povos indígenas que habitam o Pantanal sul-mato-grossense, os guatós, e ainda os ofayés. “Hoje, são duas etnias pouco numerosas que não têm garantias às terras e correm risco quanto à sobrevivência”, descreve.
Uma terceira é a guarani kaiowá. “Historicamente, esse povo sofreu o esbulho das terras para distribuição de títulos a outras pessoas e têm direito à reparação coletiva pelas violações ocorridas no período do SPI. A morosidade da demarcação de seus territórios agrava conflitos agrários na região de Dourados e no conesul de Mato Grosso do Sul, num cenário gritante de violação de direitos, que tem sido denunciado como genocídio”, ressalta a professora.
Há 15 anos pesquisando direitos indígenas no Brasil, ela analisa o marco temporal como “tese interpretativa restritiva”, não presente na Constituição Federal. A carta constitucional é expressa quanto à proteção aos direitos originários dos povos indígenas. “E, anteriormente à nossa constituinte, o direito à terra era reconhecidos por outros mandamentos constitucionais, até da época imperial”, acrescenta.
Para dar exemplos de que havia previsão do direito antes da Constituição de 1988, ela cita o Alvará Régio de 1680; a Lei de Terras de 1850; e as Constituições de 1934, 1946 e 1967.
Como especialista na área ambiental, ela ainda destaca o papel dos indígenas de guardiões pela preservação dos biomas – outro ponto em que o marco temporal vira ameaça. “Neste momento, o Brasil se volta ao cenário internacional para falar de questões ambientais, e é protagonista nesse debate. É preciso defender direitos dos povos indígenas nesse contexto, e não carregar a mancha do genocídio. É importante que o Estado brasileiro se posicione e rejeite o marco temporal”, finaliza.