Em “Tribunal Popular”, povos Indígenas e comunidades tradicionais sentenciam a Ferrogrão ao cancelamento

Em “Tribunal Popular”, povos Indígenas e comunidades tradicionais sentenciam a Ferrogrão ao cancelamento

Por Assessoria de comunicação de Terra de Direitos e do evento

Empresas e o governo federal foram julgados pelos povos indígenas e tradicionais, organizações e movimentos sociais em Santarém (PA)

A liderança indígena, Alessandra Munduruku, representou uma das acusações contra a Ferrogrão e seus cúmplices (Foto: Raissa Azeredo)A liderança indígena, Alessandra Munduruku, representou uma das acusações contra a Ferrogrão e seus cúmplices (Foto: Raissa Azeredo)

Representantes dos povos indígenas, comunidades tradicionais, organizações e movimentos sociais do Pará e Mato Grosso promoveram nesta segunda-feira (4 de março de 2024), um “Tribunal Popular” para julgar a Ferrogrão (EF-170), seus impactos e as empresas cúmplices e financiadoras do empreendimento. Durante a programação, realizada na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém (PA), a “acusação do júri” apontou uma série de violação de direitos e sentenciou a extinção imediata do projeto. A Terra de Direitos, representada pela assessora jurídica Bruna Balbi*, participou como testemunha de acusação das empresas financiadoras da Ferrogrão, como a Cargill.

“Desde o início do processo da Ferrogrão, só foram realizadas audiências nas cidades, nenhuma dentro das aldeias indígenas. Sendo que os povos Munduruku, Kayapó e Panara têm os protocolos de consulta que precisam ser respeitados, eles são nossa arma de defesa. Por isso, estamos nos unindo em uma aliança contra esta ferrovia”, disse Alessandra Korap Mundurukuque esteve ao lado de caciques e representantes dos Munduruku, e dos povos Kayapó, Panará, Apiaká, Arapiuns, Tupinambá e Xavante. O Tribunal foi composto ainda por organizações e comunidades indígenas, representantes de  comunidades de pescadores, agricultores familiares e movimentos sociais.

A sentença traz cinco argumentos de acusação: violação do direito à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé; estudos falhos e subdimensionamento dos impactos e riscos socioambientais conexos; aumento da especulação fundiária, grilagem de terras públicas, desmatamento, queimadas e conflitos fundiários; e favorecimento indevido dos interesses das empresas transnacionais Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi.

Desde a idealização da ferrovia, o direito à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé – garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e internalizada à legislação brasileira – foi desrespeitado pelo Governo Federal. “Os estudos técnicos apresentados por aqueles que defendem o projeto dizem que a ferrovia passará longe dos territórios, mas para nós, que vivemos dentro deles, está perto e nunca fomos consultados. Realizaram audiências nas cidades e jamais pisaram em nossas aldeias, como determina o nosso protocolo de consulta. Por isso, exigimos respeito ao nosso direito de ser consultado antes de colocar empreendimento perto ou dentro do nosso território”, defendeu a liderança da Terra Indígena Baú, no Pará, Mydjere Kayapó Mekrãgnotire.

Para a assessora jurídica da Terra de Direitos, Bruna Balbi, o direito à consulta deve ser realizando independente dos povos indígenas e tradicionais possuírem protocolo organizado. “Os protocolos são instrumentos criados pelos povos tradicionais, frente à morosidade do Estado brasileiro na aplicação do direito à consulta. Por meio dos protocolos, os povos estabelecem a forma como devem ser consultados, cada um conforme a sua própria organização social. Mas, é importante lembrar que o direito à consulta existe independentemente da elaboração ou não de protocolo de consulta, sendo este uma discricionariedade dos povos. A consulta, que tem a boa-fé como elemento de validade, deve acontecer sempre previamente a quaisquer decisões que possam impactar os povos e comunidades tradicionais e seus territórios. No caso da Ferrogrão, esse direito já está sendo violado”.

Além das comunidades indígenas que seriam impactadas pelo empreendimento, o Tribunal foi também espaço para manifestação e fala de representantes de comunidades tradicionais da região. Francisca Barroso, coordenadora da Rede Agroecológica de Trairão (PA), tratou dos efeitos do projeto nas comunidades de agricultores que vivem no entorno da rodovia BR-163, que corre o risco de virar uma ferrovia.

“Essa luta não é apenas dos povos indígenas, mas de todos nós que vivemos da terra e precisamos ter os nossos direitos territoriais respeitados. Nós, agricultores, estamos avisando que a agricultura familiar que alimenta esse país – afinal, as famílias brasileiras não comem soja – vai ser prejudicada com a construção desta ferrovia. Vai ser impossível produzir nessas terras que já estão ameaçadas pela grilagem e uso de agrotóxicos”, destacou Francisca.

O Programa Nacional de Logística (PNL 2035) do Ministério da Infraestrutura não tem nenhum cenário futuro sem a Ferrogrão, que demonstra a forte influência do lobby do agronegócio e das empresas internacionais – e existem outras alternativas possíveis para o escoamento de grãos que poderiam ser consideradas. “A Ferrogrão não considera o potencial de desenvolvimento da floresta. E ignora a economia local proveniente da agricultura familiar, ribeirinhos e demais comunidades amazônicas. É um projeto na Amazônia e não para a Amazônia”, explicou João Andrade, representante do GT Infraestrutura Socioambiental.

Protesto em frente à Cargill

No mesmo dia do Tribunal, manifestantes realizaram um ato contra a Ferrogrão no Porto de Santarém, chamando a atenção para os impactos da ferrovia e para sua relação com a Cargill, uma das empresas internacionais interessadas na implementação da ferrovia, e uma das responsáveis por seu financiamento.

“Os 1.000 mil km da ferrovia que passaria pelo coração da Amazônia foram propostos pelas empresas transnacionais Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi para o Governo Federal do Brasil. Caso seja construída, o Governo vai entregar os recursos deste país para a China e Europa. O lucro não será para as pessoas do Brasil. A Ferrogrão será construída no Brasil, será financiada pelo Brasil, irá destruir as florestas e os territórios do Brasil, mas apenas um pequeno lucro irá ficar no Brasil. O resto será exportado, assim como a soja e o milho”, denunciou Mathew Jacobson, diretor de campanha da Stand.Earth.

Como testemunha de acusação das empresas financiadoras, a assessora jurídica da Terra de Direitos, Bruna Balbi, ressaltou apontamentos resultantes dos estudos produzidos pela organização. ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus são as quatro maiores comercializadoras de cereais do mundo e, junto com a Amaggi, as cinco maiores comercializadoras de soja no Brasil. (…) O projeto da Ferrogrão está sendo concebido como a espinha dorsal da rede logística que favorece diretamente as empresas ligadas ao agronegócio, em detrimento dos direitos de povos e comunidades tradicionais a terra e território e à consulta e consentimento prévio, livre e informado. O curioso é que estas empresas somente existem e operam porque séculos atrás outras pessoas que falavam as mesmas línguas estrangeiras roubaram o ouro dos nossos rios e o leite das seringueiras. Os povos e as demais autoridades que se reúnem hoje neste tribunal têm nas mãos o futuro da Amazônia e do Cerrado, que, como já foi amplamente demonstrado, é, inevitavelmente, o futuro da espécie humana”, testemunhou.

O ato contra a Cargill foi realizado em frente a empresa que fica na BR-163, em Santarém (Foto: Lanna Ramos/Terra de Direitos)O ato contra a Cargill foi realizado em frente a empresa que fica na BR-163, em Santarém (Foto: Lanna Ramos/Terra de Direitos)

Sentença do júri

Ao final de oitos horas de “Tribunal”, os povos indígenas e tradicionais sentenciaram: “Considerando os graves vícios no planejamento, as violações dos direitos da natureza e dos povos e comunidades tradicionais da região, bem como a necessidade de resguardar os biomas brasileiros e o futuro do planeta dos interesses de empresas transnacionais multibilionárias, este Tribunal Popular determina o  cancelamento imediato e definitivo do projeto da Ferrogrão por parte do Governo Federal e a devida responsabilização da ADM, Bunge, Cargill, Amaggi e Louis Dreyfus pelos dados incorridos contra a natureza e os habitantes da região do Tapajós e do Xingu”, traz o documento da sentença final.

Além disso, o Tribunal também determinou que o Governo Federal promova mudanças estruturantes nos instrumentos e processos de tomada de decisão no planejamento de infraestrutura, fortaleça a governança territorial, e  promova uma nova visão sobre a infraestrutura para a Amazônia, reiterando a necessidade de consulta livre, prévia e informada aos povos originários e tradicionais para todo e qualquer empreendimento que afete direta e indiretamente povos indígenas e comunidades tradicionais.

Para Pedro Charbel, assessor de campanhas da Amazon Watch, o tribunal representa a força e determinação dos povos indígenas, comunidades tradicionais e movimentos sociais em defender seus direitos e o futuro do planeta. “O governo brasileiro deveria se atentar à sentença do Tribunal e cancelar imediatamente o projeto da Ferrogrão, caso contrário estará optando por aprofundar a destruição da Amazônia, do Cerrado e dos direitos dos habitantes desta região”, finalizou.

A sentença dada pelos povos indígenas, comunidades tradicionais, organizações e movimentos sociais foi assinada por 40 entidades.

Confira a sentença na íntegra

*Bruna Balbi é pesquisadora do Observatório de Protocolos Comunitários.

Reprodução: Terra De Direitos 

 

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